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Modernização à Inquisição

Folha de São Paulo

Quem entra no plenário do Palácio Tiradentes, sede do Poder Legislativo do Rio e antiga Câmara dos Deputados, se depara com um enorme painel em que um grupo de homens brancos, de robustos bigodes e graves gestos, parece descansar após heroica batalha.

Pintado por Eliseu Visconti em 1926, ele retrata a elaboração da primeira Constituição republicana, aprovada em 1891.

Neste Dia Internacional da Mulher, conto a história de alguns dos heróis de Visconti. Durante as discussões sobre o direito ao voto feminino, Lacerda Coutinho, constituinte por Santa Catarina, defendeu que as mulheres não têm o mesmo valor dos varões no Estado.

Já Moniz Freire, do Espírito Santo, mostrou-se um visionário ao lançar um argumento que se tornaria febre entre moralizadores do século 21: o voto feminino seria a “dissolução da família brasileira”.

Recuo alguns anos até a primeira Constituição pós-independência, de 1824. Produto de homens brancos, de robustos bigodes e graves gestos, ela era censitária e não previa o voto feminino.

Peregrinei tanto para mostrar como o 8 de Março não importa somente às mulheres, mas também à democracia. As contradições brasileiras têm suas bancadas parlamentares, e o painel de Visconti representa o machismo, velhacamente renovado, no Legislativo do Rio.

A CPI do Aborto é emblemática. Apesar do tema, o debate foi feito por homens. Só há uma mulher entre os sete membros da comissão. Das 16 pessoas ouvidas, somente duas eram do sexo feminino, sendo uma delas delegada. Ninguém do movimento de mulheres foi chamado. Nenhuma mulher que sofreu um aborto foi ouvida.

Se fosse, certamente ela não concordaria com a proposta de que todos os abortos, inclusive os espontâneos e os previstos em lei, sejam obrigatoriamente comunicados à polícia. A iniciativa é humilhante, viola a dignidade das mulheres, criminaliza-as e reafirma que o aborto é caso de polícia, não de saúde pública. É a modernização da Inquisição.

A legalização do aborto não pode ser tratada com uma banalização do procedimento. Ela é a garantia para que possamos ter políticas públicas de saúde. Proibição fingida e machismo matam: o aborto é a quinta causa de morte entre mulheres.

Parte dos deputados que apoia a medida é ligada ao governador Luiz Fernando Pezão. Seu aliado Pedro Paulo Carvalho, pré-candidato a prefeito do Rio, assumiu que espancou a ex-mulher. Apesar disso, Pezão afirmou recentemente que, antes de julgá-lo, é preciso conhecer os motivos da agressão.

A violência só será superada quando as mulheres não forem mais tratadas como cidadãs de segunda classe e tiverem voz efetiva nos rumos do país e de suas próprias vidas.