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Memórias do Cárcere

Costumo dizer que os presídios são nossos centros de amnésia. No interior de seus muros, entulhamos o que desejamos esquecer. Nesse psiquismo carcerário, tentamos enjaular nossas desumanidades, contradições e sadismos.

A memória não é constituída apenas pelas lembranças mas também pelos esquecimentos. Esquecer-se pode ser uma escolha, um ato político. Esse esforço de memória seletiva explica o motivo de os 23 anos do massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992, não serem devidamente lembrados.

Na canção “Haiti”, Caetano Veloso escarneceu o silêncio sorridente diante do massacre de 111 presos indefesos, quase todos pretos ou quase brancos quase pretos de tão pobres. Já no interior dos muros, o efeito da chacina foi bem diferente do riso silencioso.

O massacre foi um divisor de águas dentro do sistema penitenciário brasileiro. Acompanhei isso de perto porque à época tinha 25 anos, cursava História e trabalhava como professor voluntário num presídio em Niterói.

O projeto tinha uma turma para alfabetização de adultos e duas para quem não concluíra o ensino fundamental. Não havia alunos com o segundo grau completo. Alguns anos depois, presidi o Conselho da Comunidade, responsável por fiscalizar as prisões.

Essas experiências me fizeram ser chamado para mediar várias rebeliões, que se multiplicavam devido ao colapso das penitenciárias do Rio. Em todas era possível sentir a herança do Carandiru. As negociações se tornaram mais tensas. Os detentos passaram a fazer reféns por acreditarem que assim poderiam evitar um novo massacre. O Carandiru agravou a cultura violenta nas prisões.

Vinte e três anos se passaram, tragédias se repetiram e nós não conseguimos discutir seriamente o papel do sistema penitenciário. Ainda é difícil mostrar o óbvio: a violência nas cadeias alimenta a violência fora delas. Nossas prisões são lugares muito caros para tornar as pessoas piores.

Punimos muito e mal. A população carcerária brasileira cresceu 317% entre 1992 e 2013. São 600 mil detentos, quase 40% deles ainda não foram julgados. Mesmo assim, muita gente insiste que somos o país da impunidade e pede o endurecimento penal. Isso só ocorre porque condenamos principalmente os invisíveis, pretos ou quase brancos quase pretos de tão pobres. As prisões têm cor e classe.

Certa vez, depois de negociar por dois dias o fim de uma rebelião em Bangu, um preso me disse: “Tem uma coisa que o senhor precisa entender. As prisões são pedaços das favelas. É por isso que as coisas acontecem assim aqui e lá”. A música de Caetano é certeira. A exclusão não começa no sistema prisional, ele apenas a consolida.